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quarta-feira, 30 de abril de 2014

NA TERRA DOS MANAÚS


Ademir Ramos (*)
A narrativa torna-se bela quando contada num contexto apropriado com as mesuras performáticas com objetivo de provocar nos ouvintes e leitores à atenção necessária para reflexão e juízo sobre a história. Melhor ainda quando a fala é seguida de imagens representativas, construídas pelos próprios alunos em ambiente escolar. Mas, em todo caso, a matéria também é instigante quando o contador fala para grande massa. Visto que, quem conta um conto aumenta um, dois e mais pontos. Aos iniciantes é importante alertar para o contexto, o público e a ocasião, deixando margens para que o próprio público construa a sua própria sentença e identifique o personagem narrado. Juntos obedeçamos aos ensinamentos de Gabriel Garcia Márquez, ao contar uma história saiba de cor, seu começo, meio e fim. Ao contrário, a monotonia invadirá não só a tua alma como fará muito mal ao teu público, que reagirá com indiferença e outros apetrechos. Experimente e faça acontecer.

A narrativa mítica sustenta que no tempo que foi não muito distante, existia um povo de porte pequeno, com os olhos oblíquos, cabelos lisos, com extrema beleza, que se mostrava alegre e risonho por tudo que lhe faziam de bem ou de mal. Esta gente-miúda vivia na floresta e banhavam-se todas as horas num grande rio, onde amava e germinava sua prole, na esperança de assim como rio crescer e se expandir como um povo sábio, senhor da ciência da terra, do mar e do infinito mundo.
Num certo dia, vindo não sei de onde, boiou entre eles, um moço com aparência diferente, trazendo consigo um caniço na mão e um longo cipó em forma de escada. No princípio nada dizia, mas exalava um cheiro doce das flores contagiando homens e mulheres.
O nome do moço o povo queria saber. No entanto, ele continuava em silêncio. Então, coube a curuminzada da aldeia, a tarefa de tentar descobrir o nome do belo moço que tinha uma marca nas ancas, sendo desproporcional aos humanos. Como ele não se manifestava, então começou a chama-lo por variados apelidos, tendo por referência seus predicados corporais.
Além do nome, o povo queria saber o que significava também aquele caniço, bem como a escada de cipó. Era sem dúvida um mistério pra aquela gente. Mas, num certo dia uma das mulheres que voltava da roça viu aquele moço com as ancas avantajadas se transformar em cobra e entrar no tronco do pau. Quando de lá saiu veio acompanhado com outra gente, barulhando pelo mato à dentro.
Com bastante medo correu e conseguiu avisar a todos da transformação do belo moço. Foi o tempo suficiente para que o pajé fizesse desaparecer a gente-miúda, protegendo todo mundo das cobras criadas no seu próprio reino.
Passado luas, o pajé recorrendo aos deuses da floresta conseguiu decifrar o que a gente-cobra queria. Aí começou a entender a razão do caniço, que tinha por fim pescar homens e mulheres para fazer parte da corte das cobras, como presa fácil, para alimentar os seus interesses e os grandes negócios no mercado do infinito mundo, se beneficiando da vontade geral.
E o cipó escada? – Demorou mais o pajé depois de longa viagem a paricá decifrou a armação do belo moço, que se transformava em cobra durante o dia e a noite virava morcego – andirá – para chupar o sangue daquela gente.
A escada trazida pelo moço era para dar rapidez aos seus saltos enquanto homem fosse. Assim, procurou de imediato dar as devidas rasteiras em seus adversários, buscando abrigo nas instituições públicas para se tornar cada vez mais forte e dominar cada vez mais o povo gente-miúda.
Acuado em seu próprio território e sem muita alternativa, o povo gente-miúda, que muito sonhava caiu em si e começou a compreender que não era um só na floresta e que o pequeno clã cobra havia se multiplicado e se apossado do Porantim, o cetro do poder e a memória do seu povo.
A gente-cobra passou então a governar o povo, criando a figura do rei, a quem a todos deveriam obedecer cegamente. E assim, foram criando outros ninhos políticos para dominar cada vez mais esta gente-miúda com total referendo do patriarcado de Yurupari.
Triste e subjugado o reino dessa gente-miúda, apostando em sua juventude, começou a sonhar novamente, acreditando na possibilidade de criar um antídoto que pudesse barrar a esperteza do rei da gente-cobra. Assim, se valeram da força dos pajés, da irreverência da juventude, da sabedoria dos velhos e dos guerreiros para juntos mergulharem no buraco do tatu e trazerem pro meio deles a coragem do homem-gavião.
Começa então a luta dessa gente-miúda filho dos Manaús para sustentar a sua emancipação política, rompendo com as oligarquias regionais. O primeiro passo é evitar uma vez por todas que o dinheiro público seja drenado para os negócios dessa gente graúda, filhos de cobra, que usam do caniço para pescar gente, aliciando por meio de promessas e mentiras o povo.
O segundo é destroná-los de seu reinado, esvaziando suas forças por meio das urnas, provocando náusea em seu apetite eleitoral.
E finalmente, o reinado da gente-miúda, que vive no interior da floresta deve levantar sua cabeça e acreditar que unidos, com a coragem do homem-gavião, podem devorar as cobras e sustentar novas formas de governar, promovendo a alegria dos homens, com a firme determinação de distribuir e não de concentrar a riqueza nas mãos dos pouquíssimos graúdos, que reinam nesse território. A proposta dessa gente-miúda fundamenta-se na Justiça Social e no orgulho de ser amazonense.
E o nome do belo moço que durante o dia vira cobra e a noite é um morcego vampiro, quem saberá?
(*) É Professor, antropólogo e coordenador geral NCPAM/UFAM e do Projeto Jaraqui.

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