José Ribamar Bessa Feire (*)
É (para temperar o texto ouça
Gonzaguinha). É isso mesmo que você leu! Cada um defende sua tribo. Esse
locutor que vos fala já foi chamado de vândalo, sofreu prisão (foto) e
respondeu processo por danos ao patrimônio público, numa passeata na Rua
Uruguaiana, no Rio. Mas isso foi no século passado, em 1968. Acontece que agora
muitos manifestantes, que podiam ser meus netos, são presos sob a mesma
acusação com ou sem culpa no cartório. Do Oiapoque ao Chuí, a mídia jura
que os vândalos tomam contam do país.
"VÂNDALOS PROVOCAM
DESTRUIÇÃO EM MINAS" berra O Globo (27/6) em manchete de
oito colunas. "MORADORES IMPROVISAM 'MILÍCIA' CONTRA VÂNDALOS NO RS"
- grita a Folha de SP (29/6), informando em outro título:
"NO RIO, 'PITBOYS' SÃO SUSPEITOS DE ATAQUES A CONCESSIONÁRIAS".
Alguns apresentadores de telejornais chegam a encher a boca, saboreando cada
letra da palavra
Afinal, quem são os vândalos?
Depende do momento, do lugar e de quem nomeia. Originalmente era uma tribo que
falava vândalo, uma língua germânica, e que num conflito armado com o Império
Romano saqueou Roma, destruindo muitas obras de arte. Por extensão, no séc.
XVIII, na França, foram assim chamados os revolucionários que na luta contra o
feudalismo e a monarquia arrasaram monumentos e prédios públicos. Na Avenida
Paulista, há quinze dias, vândalo era todo e qualquer manifestante que
protestava pacificamente. Hoje, nas capitais brasileiras, são grupos
considerados pela polícia como baderneiros.
Muito antes disso, Roma havia
sido incendiada, mas não pelos vândalos. Durante dias o fogo consumiu a cidade,
transformando o Templo de Júpiter num monte de cinzas. Até mesmo os que
suspeitavam que o incendiário era o imperador Nero jamais usaram a palavra
vândalo para designá-lo.
De Nero aos dias de hoje, ninguém
que vandalizou em nome do Estado foi estigmatizado. O presidente George Bush
também nunca foi chamado de vândalo, apesar de ter indignado a comunidade
internacional quando comandou o saqueio no Iraque e destruiu, entre outros, o
Museu de Arqueologia de Bagdá, sacrificando milhares de vidas humanas, inclusive
de civis.
Wandali conquisiti
Ou seja, parece que bárbaros -
como queria Montaigne - são sempre os outros, os derrotados, porque quem ganha
tem o poder de nomear, de batizar, de dar nome aos bois, de classificar e de
dizer quem é e quem não é vândalo. E no séc. VIII, os vândalos foram
definitivamente derrotados: Wandali conquisiti sunt. Não sobrou
nenhum para contar a história. Diz um provérbio da Nigéria: "enquanto os
leões não tiverem seus próprios historiadores, as histórias de caça sempre
glorificarão o caçador".
Um caçador de São Paulo,
governador Geraldo Alckmin, com aquela cara de babaca - desculpem baixar o
nível, mas que ele tem cara de babaca tem - e o prefeito da capital, Fernando
Haddad - que não tinha, mas está se esforçando pra ter - justificaram
inicialmente a repressão policial. Naquele momento, para eles, quem protestava
contra o aumento do preço da passagem de ônibus era vândalo. As manifestações
cresceram, o governo recuou e finalmente reconheceu que nem todo manifestante
era vândalo.
No Rio de Janeiro, o governador
Cabral, com cara de Alckmin, declarou que a Polícia Civil havia identificado
pelo menos cinco grupos que "vem cometendo atos de
vandalismo, lesões corporais e furtos". Na lista, estão "os
anarcopunks, os militantes de partidos políticos mais radicais (não mencionou
quais), os brigões oriundos de torcidas de futebol, os neonazistas e os
bandidos de facções criminosas". Faltou nomear mais dois grupos:
a própria polícia que promoveu quebra-quebra e os revoltados, que estão putos
da vida.
É o que os franceses chamam
de ras-le-bol, ou seja, estar de saco cheio. As pessoas não
aguentam mais engarrafamentos infernais, transporte coletivo precário,
violência policial, insegurança, hospitais recém-inaugurados que não funcionam
ou que desabam como no Ceará, estádios caindo como o Engenhão, obras
superfaturadas, serviços de saúde e educação que atentam contra a dignidade
humana, justiça lenta, enfim a impunidade dos vândalos de colarinho branco.
Desconfiam do governo, do judiciário, do congresso, dos partidos políticos e
não consideram as oposições alternativa de poder.
Alguns colunistas, assustados, de
um lado com a rejeição aos partidos políticos e de outro com o quebra-quebra,
tacharam esses manifestantes de vândalos, neonazistas, radicalóides sociopatas,
pitboys de passeata ou, como quer Arnaldo Jabor, "vagabundos, punks e
marginais que se aproveitam sabendo que a polícia não pode matar". Não
querem entender que as manifestações são sintomas da crise de
representatividade na qual está mergulhado o país.
As evidências apontam muita gente
boa entre os que inicialmente promoveram o quebra-quebra e que simplesmente
estavam emputecidos. Usaram o modelo de linguagem da própria polícia que
espalha terror e medo em comunidades carentes, como vem fazendo, no Rio, o
Batalhão de Operações Especiais, que quebra, mata, esfola e saqueia.
Fioforum infra
Tem forte carga simbólica o fato
de que a violência tenha atingido ônibus, pontos de ônibus, relógios públicos,
radares, semáforos e equipamentos de apoio ao tráfego que foram destruídos,
assim como alguns monumentos e prédios públicos pichados e depredados. Não se
trata de defender o vandalismo, porque quem vai pagar a conta somos todos nós,
mas de buscar as razões que levam pessoas a manifestarem assim sua indignação.
No século XIX, condições
subumanas de trabalho, jornadas prolongadas, salários miseráveis, levaram
trabalhadores ingleses da indústria nascente, entre eles mulheres e crianças, a
destruírem máquinas e equipamentos industriais, num movimento que ficou
conhecido como ludismo em referência a Ned Ludlam, líder do
movimento. Karl Marx, que criticou o quebra-quebra, buscou ver a semente
revolucionária que ele continha e que foi canalizado para a reivindicação de
reformas sociais e políticas e acabou originando novos métodos de luta, com o
fortalecimento dos sindicatos.
Esses movimentos sempre trazem
mudanças. As cinco pessoas assassinadas no Morro do Borel é que deram origem,
em 2004, à Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência, que está convocando
agora uma manifestação pacífica neste domingo, durante a final da Copa das
Confederações.
- "É muito difícil organizar
uma manifestação pacífica na rua, no Brasil, porque o Estado é violento"
disse a Folha de São Paulo Caio Martins, 19 anos, estudante de
Historia da USP, que milita no Movimento Passe Livre (MPL) desde 2011. Ele
condenou a polícia que na primeira passeata pacífica lançou uma bomba de efeito
moral decepando um dos dedos de uma manifestante.
É evidente que ninguém pode
aceitar a destruição do patrimônio ou a agressão às pessoas, sejam elas
promovidas pela polícia ou por manifestantes. No entanto, muitas vezes, o
aparelho policial busca bode expiatório. Em 1968, num primeiro momento, fui
acusado de ter incendiado uma viatura na Rua Uruguaiana. No final, acabaram me
processando por haver rasgado a farda de um policial. Nenhuma das acusações era
verdadeira.
Quando a Polícia pediu ajuda ao
MPL para identificar os vândalos, seus integrantes se recusaram. Poderiam muito
bem, reconhecendo que Wandali conquisiti sunt, citar um dos reis
vândalos, não sei se Hilderico ou Gunderico: "Fioforum plus infra
est" , ou como diria Cícero no senado romano: O buraco é mais
embaixo.
Abaixo o vandalismo! Vivam os
vândalos!
(*) É
jornalista, historiador, professor e articulista do Diário do Amazonas .