Ademir Ramos (*)
A narrativa torna-se bela quando contada
num contexto apropriado com as mesuras performáticas com objetivo de provocar
nos ouvintes e leitores à atenção necessária
para reflexão e juízo sobre a história. Melhor ainda quando a fala é seguida de
imagens representativas, construídas pelos próprios alunos em ambiente escolar.
Mas, em todo caso, a matéria também é instigante quando o contador fala para
grande massa. Visto que, quem conta um conto aumenta um, dois e mais pontos.
Aos iniciantes é importante alertar para o contexto, o público e a ocasião,
deixando margens para que o próprio público construa a sua própria sentença e
identifique o personagem narrado. Juntos obedeçamos aos ensinamentos de Gabriel
Garcia Márquez, ao contar uma história saiba de cor, seu começo, meio e fim. Ao
contrário, a monotonia invadirá não só a tua alma como fará muito mal ao teu
público, que reagirá com indiferença e outros apetrechos. Experimente e faça
acontecer.
A narrativa mítica
sustenta que no tempo que foi não muito distante, existia um povo de porte
pequeno, com os olhos oblíquos, cabelos lisos, com extrema beleza, que se
mostrava alegre e risonho por tudo que lhe faziam de bem ou de mal. Esta
gente-miúda vivia na floresta e banhavam-se todas as horas num grande rio, onde
amava e germinava sua prole, na esperança de assim como rio crescer e se
expandir como um povo sábio, senhor da ciência da terra, do mar e do infinito
mundo.
Num certo dia, vindo
não sei de onde, boiou entre eles, um moço com aparência diferente, trazendo
consigo um caniço na mão e um longo cipó em forma de escada. No princípio nada
dizia, mas exalava um cheiro doce das flores contagiando homens e mulheres.
O nome do moço o povo
queria saber. No entanto, ele continuava em silêncio. Então, coube a
curuminzada da aldeia, a tarefa de tentar descobrir o nome do belo moço que
tinha uma marca nas ancas, sendo desproporcional aos humanos. Como ele não se
manifestava, então começou a chama-lo por variados apelidos, tendo por
referência seus predicados corporais.
Além do nome, o povo
queria saber o que significava também aquele caniço, bem como a escada de cipó.
Era sem dúvida um mistério pra aquela gente. Mas, num certo dia uma das
mulheres que voltava da roça viu aquele moço com as ancas avantajadas se
transformar em cobra e entrar no tronco do pau. Quando de lá saiu veio
acompanhado com outra gente, barulhando pelo mato à dentro.
Com bastante medo
correu e conseguiu avisar a todos da transformação do belo moço. Foi o tempo
suficiente para que o pajé fizesse desaparecer a gente-miúda, protegendo todo
mundo das cobras criadas no seu próprio reino.
Passado luas, o pajé
recorrendo aos deuses da floresta conseguiu decifrar o que a gente-cobra
queria. Aí começou a entender a razão do caniço, que tinha por fim pescar
homens e mulheres para fazer parte da corte das cobras, como presa fácil, para
alimentar os seus interesses e os grandes negócios no mercado do infinito
mundo, se beneficiando da vontade geral.
E o cipó escada? –
Demorou mais o pajé depois de longa viagem a paricá decifrou a armação do belo
moço, que se transformava em cobra durante o dia e a noite virava morcego –
andirá – para chupar o sangue daquela gente.
A escada trazida pelo
moço era para dar rapidez aos seus saltos enquanto homem fosse. Assim, procurou
de imediato dar as devidas rasteiras em seus adversários, buscando abrigo nas
instituições públicas para se tornar cada vez mais forte e dominar cada vez
mais o povo gente-miúda.
Acuado em seu próprio
território e sem muita alternativa, o povo gente-miúda, que muito sonhava caiu
em si e começou a compreender que não era um só na floresta e que o pequeno clã
cobra havia se multiplicado e se apossado do Porantim, o cetro do poder e a
memória do seu povo.
A gente-cobra passou
então a governar o povo, criando a figura do rei, a quem a todos deveriam
obedecer cegamente. E assim, foram criando outros ninhos políticos para dominar
cada vez mais esta gente-miúda com total referendo do patriarcado de Yurupari.
Triste e subjugado o
reino dessa gente-miúda, apostando em sua juventude, começou a sonhar
novamente, acreditando na possibilidade de criar um antídoto que pudesse barrar
a esperteza do rei da gente-cobra. Assim, se valeram da força dos pajés, da
irreverência da juventude, da sabedoria dos velhos e dos guerreiros para juntos
mergulharem no buraco do tatu e trazerem pro meio deles a coragem do
homem-gavião.
Começa então a luta
dessa gente-miúda filho dos Manaús para sustentar a sua emancipação política,
rompendo com as oligarquias regionais. O primeiro passo é evitar uma vez por
todas que o dinheiro público seja drenado para os negócios dessa gente graúda,
filhos de cobra, que usam do caniço para pescar gente, aliciando por meio de
promessas e mentiras o povo.
O segundo é
destroná-los de seu reinado, esvaziando suas forças por meio das urnas,
provocando náusea em seu apetite eleitoral.
E finalmente, o
reinado da gente-miúda, que vive no interior da floresta deve levantar sua
cabeça e acreditar que unidos, com a coragem do homem-gavião, podem devorar as
cobras e sustentar novas formas de governar, promovendo a alegria dos homens,
com a firme determinação de distribuir e não de concentrar a riqueza nas mãos
dos pouquíssimos graúdos, que reinam nesse território. A proposta dessa
gente-miúda fundamenta-se na Justiça Social e no orgulho de ser amazonense.
E o nome do belo moço
que durante o dia vira cobra e a noite é um morcego vampiro, quem saberá?
(*) É Professor,
antropólogo e coordenador geral NCPAM/UFAM e do Projeto Jaraqui.