Pobre Manaus... perdemos o respeito, porquanto
temos assistido a tudo isso com incômoda passividade, distantes de atitudes que
possam traduzir o mínimo de indignação frente à destruição da cidade.
Paulo
Figueiredo (*)
Manaus
tinha uma bela topografia, que foi sendo destruída ao longo dos anos. Seus
relevos suaves e igarapés de águas límpidas e puras, cor de caramelo escuro,
foram sepultados pela incúria e pela incultura. Na construção da cidade, após a
aldeola, um casario característico da arquitetura colonial portuguesa, com suas
vias urbanas interligadas pelo projeto de transporte público implantado pelos
ingleses. Essas características, com seus palácios históricos ainda existentes,
fizeram-na distinta e sedutora, marca que insiste em resistir, pelo menos no
coração e na alma de seus filhos e amantes irrenunciáveis, dentre os quais me
incluo.
Anda suja e maltratada. Esburacada, uma sucessão
imensa de crateras, em vias tobogânicas. Os igarapés, que a cortavam de ponta a
ponta e em todos os sentidos, foram soterrados ou transformados em longas
faixas de esgoto a céu aberto, enquanto uma horda de predadores invadiam seus
espaços para transformá-la num amontoado urbanístico disforme e irreconhecível.
E a ação deletéria, presente especialmente no centro velho da cidade, em cada
uma de suas ruas e esquinas, encontra autores e responsáveis em todos os níveis
sociais, facilmente identificados pelo aventureirismo típico e pela ausência de
compromisso com a história de Manaus.
Sem nenhum sentimento saudosista, mas apenas em
homenagem às inclinações naturais da cidade, tenho registrado na imprensa a
falência da urbe, com sua face e contornos urbanísticos desfigurados. Perdemos
a vocação em função da qual sempre existimos, desde os primórdios, com o
entupimento de nossas artérias aquáticas, que deram ensejo no passado ao
surgimento de um sem número de ‘banhos’ privados e públicos, sítios enriquecidos
por riachos, onde cultivávamos a alegria nos finais de semana.
E assim fomos perdendo tudo, nossas ruas antigas e
seus paralelepípedos portugueses, as belas fachadas das residências senhoriais,
os clubes tradicionais, o Acapulco, os prostíbulos memoráveis, os bondes, a
arborização com fileiras intermináveis de benjaminzeiros, e até nossos poucos e
conhecidos loucos e cegos, mais do que visíveis, merecedores de todo o nosso
desvelo. Perdemos o respeito, porquanto temos assistido a tudo isso com incômoda
passividade, distantes de atitudes que possam traduzir o mínimo de indignação
frente à destruição da cidade.
Enquanto isso, o Brasil desenvolvido continua
insensível em relação ao Estado. Sob a liderança de São Paulo, que no passado
ajudamos a construir, durante o período áureo de exportação da borracha, quer
retirar a única alternativa econômica que mal ou bem ainda possuímos, sem nos
oferecer nada em troca ou como compensação. É o prêmio que recebemos pela
ocupação da Amazônia, como soldados de sua conservação e em defesa de sua
integração permanente ao conjunto da Nação brasileira.
Não plantamos uma grande civilização no gigantesco
Amazonas, passados mais de quatro séculos após a navegação inaugural do
explorador espanhol Vicente Pinzón, que o designou de “Río Santa María del Mar
Dulce”. Continuamos patinando, mais precisamente, na confluência com o
Negro, onde os colonizadores, com os índios, seus primeiros habitantes,
edificaram para sempre a nossa Manaus. Não conseguimos nem de longe repetir, ainda
que muito modestamente, a notável experiência civilizatória ancorada nos
grandes cursos d’água pelo mundo afora, como ocorreu no Tigre e no Eufrates, no
Nilo, no Amarelo e no Indo, presentes na Suméria (do grego: entre rios) –
Mesopotâmia, no Nilo, na China e na Índia.
Mas é o que temos e ainda assim é tratado com
histórica indiferença, como evidenciam as muitas casas construídas de costas
para o rio, fato que começamos a corrigir nas últimas décadas. Mais grave é que
a falta de educação, de informação e de respeito ao meio ambiente fazem com que
os poucos igarapés que restam e a orla do Rio Negro sejam transformados em
grandes lixeiras urbanas, que comprometem o nosso ecossistema fluvial.
Insistimos em desconhecer que a existência só é possível pela água, pelo rio,
que comanda a vida, como nos ensinou Leandro Tocantins, sem a qual não seria
possível iniciarmos a grande aventura do ser humano sobre a terra.
Imergindo na realidade atual, a Copa do Mundo bate
à porta de Manaus. E, com exceção da discutível Arena da Amazônia e de seus
preços estratosféricos, tudo indica que esquecemos de vez os demais e tão
decantados projetos do que hoje chamam de mobilidade urbana, espécie de
eufemismo com o qual passaram a designar o transporte público e o privado. Não
se fala mais em BRT (“Bus Rapid Transit”) e Monotrilho. O certo é que, com Copa
ou sem Copa, a situação no dia a dia da cidade tornou-se caótica. Não há um
horário sequer sem engarrafamentos quilométricos e insuportáveis, com o tráfego
obstruído e em cima de um sistema de transporte coletivo deficiente e caro,
para não dizer inexistente.
E como ficou fácil fechar a cidade, como o fizeram
os mototaxistas no início desta semana, um flagelo a mais no trânsito de
Manaus, pobre Manaus. É, não temos dado sorte. Até quando?
(*) É
amazonense da gema, de Itacoatiara, advogado e articulista do Diário do
Amazonas.