Ana Carla Fonseca (*)
Escaldados que estamos por parcerias público-privadas
em que alguns ganham e todos pagam e por operações urbanas de transparência
questionável, entendo que o título acima possa suscitar muxoxos. Mas, se a
cidade de amanhã se faz com as ações que tomamos hoje, nada melhor do que beber
uma bela dose de otimismo, diretamente da fonte de experiências que nos lavam a
alma.
Mundo afora, brotam casos de investimento privado
em políticas urbanas, sociais e até de saúde pública que, com abordagens
inovadoras e compromissos de longo prazo, transformam bairros, oferecem
oportunidades de inclusão socioeconômica e, além disso tudo, são bons negócios.
Quimera? Utopia? Nada disso! Preparem as malas mentais, para uma pequena
peregrinação por iniciativas criativas.
Incensada por sua criatividade e por ter sido o
estopim do debate (e da prática) da economia criativa, Londres segue à risca a
intenção de se tornar o polo criativo do mundo. Nessa pauta, cabe tudo - de
programas de economia criativa transversais às várias pastas de governo, a
projetos de reinserção de áreas esgarçadas do tecido urbano. Caso emblemático é
o da Tate Modern, museu de vanguarda e ícone visível de um processo de
transformação da região de Southbank. Mas o caso que mais chama a atenção, por
ser investimento privado com impacto social, é o da Old Truman Brewery.
Com raízes que remontam a 1666, a antiga fábrica de
cerveja já foi a maior da cidade, no áureo século 18. Quando fechada, em 1988,
lançou o bairro em um misto de desânimo e decadência. Até há cerca de 15 anos,
quando o grupo The Zeloof Partnership comprou o conjunto de edifícios
patrimoniais e os converteu em um microcosmo que emana economia criativa por
cada um de seus 45 mil m2. Lar de 250 empreendimentos criativos das mais
diversas ordens - lojas, galerias, mercados, bares, restaurantes, ateliês,
escritórios, casas de eventos -, a Old Truman Brewery é um ecossistema de
trabalho, lazer e efervescência, além de ímã de turistas de todo o mundo.
Investimento 100% privado, não apenas é um excelente
negócio, como gera impactos econômicos, sociais, turísticos e urbanos que se
irradiam por toda a região.
Outra história de derrocada e ascensão nos chega da
holandesa Eindhoven. Conhecida pelos amantes do futebol por dar nome a um time
de primeira, a fama da cidade foi construída graças à instalação, em 1891, da
primeira fábrica da Philips. Nas décadas seguintes, o complexo de invenção e
produção da empresa só fez crescer. Às lâmpadas às quais ainda hoje associamos
o nome Philips vieram se somar outras invenções, saídas das pranchetas e dos
laboratórios ali instalados: vidros, rádios, CDs, cerâmicas e muitos outros
fizeram a glória da cidade e atraíram profissionais de todos os cantos do
mundo.
Com a migração das fábricas da Philips para outros
países, no doloroso processo de desindustrialização, sobraram para a cidade um
contingente de desempregados e um complexo de fábricas desocupadas, a poucos
minutos do centro. Em 2004, a incorporadora imobiliária Trudo e dois parceiros
(a construtora VolkerWessels e a Prefeitura de Eindhoven) compraram o Strijp-S,
um complexo de 66 acres, onde a Philips produziu de tudo. O que surgiu disso
foi um plano inovador de reutilização do espaço, que hoje abriga um parque de
skate, inúmeros escritórios de design e arquitetura, gravadoras musicais,
ateliês de artistas, salas de eventos e exposições e toda a multiplicidade de
empreendimentos que formam um ambiente criativo.
Atraídos pela vivacidade do lugar, pela
disponibilidade de espaço e pelos aluguéis convidativos, profissionais
descolados de Amsterdã e Roterdã passaram a considerar a outrora modorrenta
Eindhoven um celeiro de possibilidades. Quanto mais pessoas criativas moram em
uma cidade, mais criativa ela passa a ser; quanto mais criativa é uma cidade,
mais profissionais criativos ela atrai. Por isso a Trudo tem na mira o
lançamento de 240 apartamentos acessíveis em estilo loft, um mercado de
alimentos regionais, um parque que lembra o High Line de Nova York e uma série
de containers que servirão de locais de experimentação para artistas. Quebrando
com a lógica das incorporadoras tradicionais, a Trudo conseguiu não apenas
catalisar um processo de transformação da cidade, como concretizar um excelente
negócio (a expectativa da empresa é de, na próxima década, ao menos dobrar seu
portfolio imobiliário, hoje avaliado em 200 milhões de euros).
O exemplo mais apetitoso, porém, nos chega da
pequenina comunidade de Sant Benet de Bages, encarapitada nas montanhas da
Catalunha. Nela, o premiado chefe Ferran Adrià dirige desde 2007 a sede da
Fundación Alicia, criada por parceria entre o Governo da Catalunha e o banco
Caixa Manresa. O nome não é uma homenagem à musa do artista, mas sim o
casamento de duas de suas paixões: ALImento e ciênCIA. A Fundação é um centro
de pesquisas gastronômicas e inovação tecnológica, que une ciência, cultura,
sociedade e gastronomia, para promover a alimentação saudável e não por isso
menos atraente.
Além das pesquisas alimentares para combate aos
males que nos afligem - diabetes, anorexia, hipertensão etc. -, a Fundação
oferece inúmeras oficinas de conscientização de crianças, jovens e adultos, que
usam e abusam da ludicidade e do encantamento. É impossível resistir à gincana
das frutas, ao concurso de exercícios retribuídos por avelãs em igual número de
calorias ou à vivência que atiça os cinco sentidos. Afinal, se inovação se
baseia em criatividade, despertá-la é fundamental para a pessoa, a sociedade e
a economia.
Três experiências distintas e inspiradoras, como
tantas outras que podemos garimpar em todos os continentes. Sob medida para os
que defendem que benefícios econômicos, sociais e urbanos só funcionam quando
somam forças.
(*) É economista e urbanista, consultora e palestrante internacional pela Garimpo de Soluções.
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