Ellza Souza (*)
Esse negócio de “reparar carro” no
espaço público é algo que foi surgindo à medida que as cidades foram explodindo
demograficamente. Muita gente veio do interior à procura de trabalho que não
tem pra todo mundo. Então inventaram isso. O “negócio” foi crescendo. Crianças,
jovens e adultos, sem estudo e sem vontade de trabalhar se aperfeiçoaram e a
coisa foi prosperando. Hoje é uma atividade que ninguém tolera, como os
camelôs, mas ninguém consegue organizar para que essas pessoas se enquadrem
como trabalhadores e ganhem seu salário dignamente sem precisar constranger,
extorquir, ameaçar. Aliás tudo que se relaciona a público: verba pública,
espaço público, o próprio público, é tratado com desprezo pelas autoridades.
Temos tudo e não temos nada. E vai-se criando esses grupos “de trabalhadores”
que sabemos fazem de tudo, menos trabalhar.
Nesse mundo ao relento aprende-se
de um tudo. Juntam-se aos bem intencionados, os maus, os que chegam cheios de
ideias para manipular essas pessoas abandonadas pelo poder “público”. Formam-se
verdadeiras quadrilhas na rua que ficam entulhadas de vendedores, flanelas e o
“diabo a quatro”, tomando calçadas, ruas, meio-fio. Tornam-se os donos do
espaço do público. Os governantes das cidades não têm tempo pra tratar disso.
Estão ocupados com negócios mais ousados. Flanelinha? Algo tão meigo,
inofensivo. Extorsão? Corrupção? Já nos acostumamos com isso. Uma reclamação
aqui, outra ali, nada que incomode. Estamos vivendo entre escândalos,
desmandos, desvios, impunidade. E a coisa vai tomando forma. Na rua vai-se
aprendendo regras para melhor achacar a população. A ousadia vai tomando forma
e o enfrentamento e a tragédia só não acontecem porque quem tem carro acha que
é rico e pode pagar “20 real” para estacionar num lugar que não é seu mas é
nosso. Essa apatia é geral e quem está no poder sabe que para
continuar assim é só deixar como está: saúde ruim (doente o povo não tem forças
para lutar); estradas ruins (mal alimentado pois não tem como trazer a produção
do campo para a cidade principalmente se for através dos rios); lazer e cultura
(apenas grandes eventos, coisas como museus, bibliotecas, teatros nas
comunidades não interessam). Educação então nem pensar. O desprezo pela
educação de qualidade, eficiente, é tanta que basta observar as escolas
públicas principalmente as do interior que o abandono é integral. Nas pequenas
cidades que parecem tão fáceis de administrar dá pra ver coisas como lixo
jogado na beira dos rios, fruteiras “carregadas” cujos frutos não chegam às
feiras da cidade (no caso de Manaus), escolinhas fazendo festas e no fim os
copos descartáveis são jogados no meio da mata. Não é falta de projetos que
esses estão por toda parte com belos títulos. É falta de decência mesmo.
Quando começou esse negócio de
reparar carro eu trabalhava num banco no centro. Início da década de 80.
Naquela época já não aceitava esse tipo de coisa. E não dava dinheiro para o
elemento que aparecia do nada e dizia estar “reparando” o carro velho que eu
tinha. Preferi vender o carro a me sujeitar ao estresse todos os dias. Apelei
para a carona, para o ônibus, para o jegue até, só não posso me sujeitar a algo
que não concordo e não acho correto. Assim como os flanelas, os que jogam lixo
nos rios e igarapés, os camelôs, devem ser multados e tirados das vias
públicas. Ou acabamos com essa esculhambação que “impera” nas grandes cidades
ou todos viveremos cada vez mais reféns do descaso de políticos que não estão
nem aí para exercer a atividade para os quais foram eleitos: cuidar do público.
(*) É escritora, jornalista e articulista do
NCPAM/UFAM.
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