Roberto DaMatta
(*)
O repórter fuzilou:
professor, como explicar essas manifestações? Não é fácil ser professor e
cronista. O papel de cronista leva para uma querida reclusão, para uma ampla
liberdade interior. O de professor tem uma face inevitavelmente resignada,
coercitiva e pública. O resultado é que o meu pobre eu, que melhor do que
ninguém entende a sua imensa ignorância, brigava com o meu senso de
responsabilidade pública. Esta, queria colaborar; aquele, conhecedor dos seus
limites, só queria dizer o que ninguém disse: que eu não sei, que ninguém sabe
ou sabia...
Que falar do mundo
é um palpitar de ignorâncias e aproximações. Que o futuro a Deus pertence e que
o futuro, como ensinava Santo Agostinho, é o presente prolongado. A Certeza,
essa deusa em cujo altar depositamos flores (e grana), é tão difícil quanto a
Verdade. A "notícia" é justamente o imprevisto que desmancha planos
e, supomos, aponta caminhos. A vida é cheia de surpresas. Projetos perfeitos
para melhorar o Brasil produziram efeitos contraditórios. A esquerda, como
disse o próprio Lula, não estava velha? E a popularidade de Dilma não subiu? E
os fatos envolvendo o PSDB? Afinal, é tudo farinha do mesmo saco?
Nossas ações têm
consequências imprevistas. O bem pode gerar o mal e até mesmo a má-fé pode
engendrar o bem. Aliás, o ditado - há males que vêm para o bem - diz muito
quando é lido pelo avesso: há bens que vêm para o mal. Tudo o que fazemos,
leitores, deixa rastro, por mais calculistas, delicados ou cautelosos que
possamos ser.
***
Então, professor,
como explicar o atual momento? Pensei imediatamente na dificuldade que tem o
pensamento moderno (que privilegia o indivíduo) para entender algum movimento
coletivo (no qual o ator é uma coletividade). A soma não nos intriga, mas a
interligação nos deixa apalermados. Curioso como a tecnologia trás de volta o
mundo como um todo. Agora mesmo, Obama discute um modo de disciplinar a
espionagem global que, do ponto de vista dos Estados Unidos, faz parte de sua
patriótica defesa. Uma tecnologia específica nos obriga a tomar consciência de
suas implicações abusivas e relembra a totalidade da qual somos parte.
Lembrei-me do
Lévi-Strauss de Tristes Trópicos (de 1955) quando, com aquela sua excepcional
visão distanciada que transforma tudo o que é atual e presente em algo minúsculo
e relativo, afirma que todo avanço tecnológico implica um óbvio ganho, mas
igualmente uma perda. Freud, adverte em 1930, em O Mal-estar na Civilização,
como é um engano pensar que o poder sobre a natureza - esse apanágio de nossa
"civilização" - seja visto como o centro da felicidade. Falamos com
um filho que está em outra cidade pelo telefone, ou lemos a mensagem de um
amigo querido que fez uma longa viagem. Curamos igualmente muitas doenças e
prolongamos a vida. Mas isso não prova um estado permanente de felicidade.
Muito pelo contrário, tais exemplos não seriam a prova de um "prazer
barato"? Como, numa noite fria, colocar a perna para fora do cobertor e
depois cobri-la novamente? Porque, acrescenta Freud, se jamais tivéssemos saído
da aldeia, nossos filhos e amigos estariam ao nosso lado e toda essa tecnologia
seria inútil. Ademais, complementa, "de que nos vale uma vida mais longa
se ela for penosa, pobre em alegrias e tão plena de dores que só poderemos
saudar a morte como uma redenção?".
Em seguida a essas
observações realistas (e proféticas) mais do que pessimistas, como o próprio
Freud as classifica, ele chega a um ponto essencial: não temos o direito de
considerar que um estado subjetivo, como a nossa felicidade, seja imposto a
outras pessoas, épocas e coletividades. Mudar de ponto de vista e relativizar é
uma sabedoria e uma cambalhota.
O controle da
natureza não justifica o controle sobre outras formas de vida.
***
Sou visitado por
minhas netas, jovens, animadas, lindas como uma praia de Janeiro e cada qual
abastecida de um celular. Amorosas, elas conversam com o avô, mas nenhuma deixa
de teclar o seu aparelho, que é mais uma prótese a provar a nossa sempre
carente humanidade. Contador inveterado de histórias, lembro de um evento
ocorrido quando era menino e vi meu pai feliz tirando de sua pasta maços de
dinheiro cheiroso - uma bolada! - a qual correspondia a um aumento de salário
pago retroativamente. Somos reativos: só agimos depois das tragédias e dos
escândalos; mas somos também retroativos porque, dependendo da categoria e da
pessoa, o "governo" paga direitos passados. O "legal" é tão
generoso como um beijo na boca...
Logo percebi que as
netas ouviam pela metade. Claro: cada uma delas estava enredada, falando ao
mesmo tempo com outras pessoas as quais eram muito mais (ou tão) reais quanto
eu com meu corpo e minhas fábulas infelizmente permanentes.
Entendi que minhas
netas não estavam sós. Cada qual era uma multidão. Uma delas, inclusive,
manifestou que contava o que eu contava para mais dez amigas - na hora e no
ato. Eu pensei estar num encontro de família e estava, sem sair de casa, numa
passeata.
(*) É professor,
antropólogo e articulista do Estadão.
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