A partir de meados da década de 1990,
a arte no Pará vem assumindo gradualmente sua fisionomia de expressão simbólica
da cultura intercorrente com as técnicas e procedimentos da arte moderna,
sobretudo desde a pop art. Saindo da condição de espaço fértil para o
extrativismo científico, cultural e artístico, o Pará vem assumindo sua fala
como produtor de conhecimento, detentor de valores próprios. E o que dizer do
nosso Amazonas... com a palavra os formuladores das políticas culturais do
Estado e da Sociedade.
João de Jesus Paes Loureiro (*)
O passado não pode matar o presente.
Nem tornar o presente o passado de um passado. O que passou mantido como
símbolo de valor que ultrapasse o presente. O passado deve ser respeitado,
garantido em sua integridade, resguardado como exemplo de um contexto cultural,
mas não em superposição de superioridade ao presente.
No Pará perdura ainda a ideia de ter
havido uma Belle Époque (expressão marcada do apogeu parisiense no fin du siècle) correspondente ao período final do ciclo
da borracha, que teria elevado a cultura local a uma altura jamais alcançada
depois dela. A partir de então viver-se-ia a história de uma queda, prostrados
em um estado comatoso e letárgico. Instalou-se pela cultura dominante a
ideia de uma via-sacra às avessas: a ressurreição anterior à agonia. Teria
havido a Belle Époque e, depois... o resto! O não-lugar do novo. Mas não é
propriamente assim.
A celebrada Belle Époque de Belém,
como se diz, na verdade foi o fausto colonialista da Belle Époque francesa
beneficiando-se do mercado consumidor do Pará amazônico, ainda com os
bolsos cheios do dinheiro da borracha. A consagração de um colonialismo
elegante que se tornou modelo para o gosto e motivo inibidor do reconhecimento
de uma produção local com as características de um “ethos” amazônico,
considerado, nessa óptica, em descompasso com as artes modeladas na Europa.
Houve na Região Norte um longo
período de relativo isolamento até fins da década de 1950 e durante a fase
de emparedamento político cultural via ditadura militar (que considerou a
Amazônia uma terra sem homens para a vinda de homens sem terra, sacramentando a
invisibilização do homem na região). A partir de meados da década de 1990, a
arte no Pará vem assumindo gradualmente sua fisionomia de expressão
simbólica da cultura intercorrente com as técnicas e procedimentos da arte
moderna, sobretudo desde a pop art. Saindo da condição de espaço fértil para o
extrativismo científico, cultural e artístico, o Pará vem assumindo sua fala
como produtor de conhecimento, detentor de valores próprios, criador de formas
artísticas: o “Pássaro Junino” como invenção de um gênero de teatro musical
popular; o “Boi Tinga” como um caso de dança-teatro na época junina; o Carimbó”
e o “Lundu” como ritmos de possibilidades jazzísticas e eletro; as
“guitarradas” e o “tecnobrega” como incorporações do pop caribenho; a dança de
pesquisa local intercorrente com linguagens contemporâneas do movimento; a
literatura de pensamento universal a partir do local; a fotografia, o cinema, a
história em quadrinhos, o grafitismo, a pintura corporal indígena, o design de
joias, o ecumenismo do Círio de Nazaré e a culinária. Operam-se originais
hibridizações próprias das paisagens etnoculturais configuradas pela
civilização internética. Percebe-se uma cadeia produtiva no campo das artes
envolvendo pesquisa, realização, circulação e consumo desconfinado.
Estamos assistindo a uma época na
qual “Belém se mexe”. Reverbera essa forma de efervescência da produção artística local. Isso
não significa fechamento ou circunscrição no círculo do silêncio regional.
Trata-se de uma expressão a partir do local, plurissignificativa, assimiladora
e hibridizante, superpondo a paisagem cultural nativista moderna à paisagem da
geografia eletrônica da comunicação, o imaginário local dialogando com o
imaginário cósmico. Entre o rio e a floresta vê-se o infinito. No confronto com
a modernidade pós-moderna há uma dionisíaca poética do imaginário.
Esse desentortar a antiga história da
enviesada Belle Époque parisiense em Belém para a atual “bela época” de um
nativismo moderno e transacional emerge da criatividade dos artistas. E traz em sua
estrutura a incorporação frontal das relações estéticas complexas da
contemporaneidade, o fascínio pelas poéticas da individualidade, as
transgressões de modelos hegemônicos, a substituição da imitação pela
iniciativa de propor novas formas e possibilidades criativas, legitimação de
materiais locais na mesma dimensão dos já consagrados historicamente em outras
culturas.
Há, para quem possa observar
atentamente, uma visível anomia na expressão cultural da arte no Pará. Uma
mudança de qualidade e quantidade acumulada por décadas e que, no contexto de
sua realidade possível, se revela na diversificada produção artística e passa a
ter um público crescente que reconhece o valor contido nessas poéticas.
A arte é uma encantaria da cultura. As encantarias são
olimpos submersos nos rios da Amazônia habitados pelos encantados, que são
signos e deuses desse relicário que é o imaginário amazônico. Expressam a
poética dos rios de água doce e da floresta. Assim, também, as artes no Pará
mostram-se como um jorro de poética nativista moderna, no oceano universal da
cultura. Um crescente diálogo transacional com a contemporaneidade do mundo.
Esta sim pode ser considerada a emergência de uma “bela época” artística de
Belém e do Pará.
João
de Jesus Paes Loureiro é escritor, poeta, autor dos
livros Café Central – O Tempo Submerso nos Espelhos, Água da Fonte,
Romance das Três Flautas, entre outros.
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